Descoberta revela que caçadores da Era Glacial moldaram ossos de baleias encalhadas em ferramentas há 20 mil anos no Golfo da Biscaia
No cenário congelado do Paleolítico Superior, caçadores-coletores encontraram no litoral do Golfo da Biscaia uma fonte inesperada de sobrevivência: os ossos de baleias encalhadas.
Hoje submersa pelo mar, essa antiga região serviu de palco para uma prática que surpreende arqueólogos até os dias atuais.
Descoberta inédita revela uso de ossos de baleia
Em um estudo publicado na revista Nature Communications, uma equipe de pesquisadores identificou as primeiras evidências conhecidas de humanos moldando ossos de baleia para fabricar ferramentas. O trabalho revelou que, há cerca de 20 mil anos, esses grupos humanos já aproveitavam os restos de pelo menos seis espécies diferentes de baleia.
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Entre os animais identificados estão cachalotes, baleias-comuns, baleias-azuis, baleias-cinzentas, baleias-francas e até botos.
A diversidade de espécies mostra que o importante não era o tipo de baleia, mas sim a oportunidade de utilizar o material trazido pelas águas. Esses restos mortais, que chegavam até a praia, eram transformados em instrumentos essenciais para a caça e sobrevivência.
Como as ferramentas foram identificadas
No total, os cientistas analisaram 83 objetos moldados e 90 fragmentos ósseos não trabalhados. Todos foram encontrados em 26 cavernas e abrigos rochosos ao longo do Golfo da Biscaia, região que abrange o norte da Espanha e o sudoeste da França.
Para determinar de quais animais vieram os ossos, os pesquisadores aplicaram a técnica de Zooarqueologia por Espectrometria de Massas, conhecida como ZooMS.
Essa metodologia permite identificar proteínas de colágeno exclusivas de cada espécie, mesmo em fragmentos altamente trabalhados ou deteriorados. Assim, foi possível associar cada peça à espécie de origem, mesmo após milhares de anos.
Ferramentas mais antigas do que se imaginava
As peças mais antigas datam de 20 mil a 19 mil anos atrás, durante o período magdaleniano do Paleolítico Superior Superior.
Esse achado retrocede em mais de três vezes a data dos artefatos de osso de baleia conhecidos até então, ampliando significativamente o conhecimento sobre o uso desse material pelos primeiros humanos.
Naquele tempo, o clima era consideravelmente mais frio e o nível do mar, mais baixo do que hoje. Isso criava um ambiente costeiro repleto de vida marinha, oferecendo aos caçadores-coletores uma fonte constante de recursos. O mar, ao trazer as carcaças, fornecia matéria-prima abundante e durável.
Por que os ossos de baleia eram tão valorizados
Segundo os pesquisadores, é improvável que os caçadores-coletores tivessem capacidade de caçar as baleias diretamente. Sem embarcações apropriadas ou arpões especializados, as populações da época provavelmente coletavam carcaças já encalhadas na praia. Nessas condições, os ossos se tornavam um presente do mar.
Comparado a outros materiais disponíveis, o osso de baleia possuía vantagens claras. Era mais resistente do que a madeira, que apodrecia, e menos frágil do que a pedra, que podia lascar. Além disso, sua disponibilidade aumentava sempre que o oceano trazia novos cadáveres. Assim, esses povos aram a trabalhar o material com fogo e ferramentas de pedra, moldando armas e instrumentos.
Predomínio dos ossos de cachalote
Boa parte das ferramentas identificadas, especialmente as armas como pontas de projéteis e hastes, foi fabricada com ossos de cachalote. Embora o motivo exato não esteja totalmente esclarecido, uma possível explicação está na própria anatomia do animal. Os cachalotes possuem mandíbulas longas e densas, oferecendo um material particularmente adequado para moldagem e resistência.
Essas armas serviam para caçar outros animais terrestres da época, como renas e bisões. Assim, o osso de baleia, transformado em instrumento de caça, fechava um ciclo de aproveitamento de recursos do ambiente costeiro.
Estudo traz informações também sobre as próprias baleias
Além de identificar as espécies, os pesquisadores foram além. Com o uso da análise de isótopos estáveis — formas variantes de átomos —, conseguiram obter dados sobre a dieta e o ecossistema marinho de milhares de anos atrás.
Os resultados mostraram algumas semelhanças com as dietas de baleias modernas. Por exemplo, as baleias-comuns apresentaram baixos índices de nitrogênio, o que indica alimentação rica em krill. Já os cachalotes mostraram valores elevados, compatíveis com uma dieta baseada em lulas.
Entretanto, algumas diferenças chamaram atenção. Em várias amostras, os níveis de carbono e nitrogênio eram superiores aos encontrados nas populações atuais, sugerindo águas mais frias ou mudanças nas cadeias alimentares daquele período. Outro dado curioso foi a presença de baleias-cinzentas no Atlântico, uma espécie hoje restrita ao Pacífico.
Por que o uso de ossos de baleia desapareceu
Apesar da ampla utilização durante milhares de anos, o registro de ferramentas de osso de baleia praticamente desaparece após 16 mil anos atrás. A partir desse período, apenas um artefato foi recuperado na Alemanha.
As causas desse desaparecimento permanecem incertas. Pode ter ocorrido uma mudança cultural, levando ao abandono da prática, ou simplesmente o registro arqueológico não foi preservado.
Como parte das antigas áreas costeiras está hoje submersa devido à elevação do nível dos mares após o fim da Era Glacial, muitos vestígios podem estar perdidos sob as águas.
Os pesquisadores sugerem que futuros achados submersos poderão ajudar a esclarecer esse enigma e revelar se o uso do osso de baleia continuou além do que hoje conseguimos comprovar.
Referência científica: Krista McGrath et al (2025). Ferramentas de osso de baleia do Paleolítico Superior revelam ecologia humana e de baleias no Golfo da Biscaia. Nature Communications. https://www.nature.com/articles/s41467-025-59486-8