O Projeto de Transferência de Água Sul-Norte da China visa levar 44,8 bilhões de metros cúbicos de água anualmente dos rios chuvosos do sul para o seu norte árido. Conheça em detalhes este que é considerado o maior projeto de desvio de água já realizado na história e os debates que o cercam.
A China enfrenta um desafio hídrico monumental: uma disparidade crítica entre o sul, com abundância de água, e o norte, árido e densamente povoado. Para solucionar essa questão vital, o país embarcou no Projeto de Transferência de Água Sul-Norte (SNWDP), reconhecido como o maior projeto de desvio de água da história.
Concebido em meados do século XX e com conclusão projetada para 2050, este megaprojeto envolve a construção de três gigantescas rotas para transpor vastos volumes de água. Este artigo analisa a complexa engenharia, os impactos socioeconômicos e ambientais, as opiniões de especialistas e os intensos debates em torno desta obra de engenharia verdadeiramente faraônica.
A luta da China contra a escassez de água no Norte
A ideia do Projeto de Transferência de Água Sul-Norte remonta a 1952. Na época, o então líder chinês Mao Zedong, durante uma visita ao Rio Amarelo, observou a disparidade hídrica do país e expressou a necessidade de o norte “pedir um pouco emprestado” de água do sul. A principal justificativa para esta colossal iniciativa é a severa escassez de água que afeta o Norte da China. Essa região, que inclui megacidades como Pequim e Tianjin, é um polo crucial para a agricultura e a indústria do país.
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Cientistas alertaram que a superexploração dos recursos hídricos subterrâneos no norte, que sustenta uma população de aproximadamente 200 milhões de pessoas, poderia levar ao esgotamento de aquíferos em poucas décadas, resultando em problemas graves como a subsidência do solo, especialmente em Pequim. Após quase meio século de meticuloso planejamento e estudos, o projeto foi oficialmente lançado em dezembro de 2002, com o objetivo de otimizar a alocação de recursos hídricos e apoiar o desenvolvimento socioeconômico sustentável.
As três grandes rotas: um novo mapa hídrico para a China
O SNWDP é composto por três extensas rotas de desvio que interligam os quatro principais rios da China – Yangtze, Amarelo, Huaihe e Haihe – formando uma nova e complexa rede hídrica nacional.
A Rota Oriental (ERP) capta água do curso inferior do Rio Yangtze, na província de Jiangsu, e utiliza em grande parte o histórico Grande Canal Pequim-Hangzhou, além de um sistema de 34 grandes estações de bombeamento para elevar a água. A Fase I desta rota está operacional desde novembro de 2013 e tem capacidade anual de 8,8 bilhões de metros cúbicos (BCM).
A Rota Central (MRP) desvia água do Reservatório de Danjiangkou, localizado no Rio Han (um importante afluente do Rio Yangtze), que teve sua barragem significativamente alteada para permitir o fluxo por gravidade. Deste ponto, a água segue por um canal recém-escavado e um impressionante túnel sob o Rio Amarelo, abastecendo Pequim, Tianjin e outras cidades desde dezembro de 2014. Até o final de 2024, as rotas Oriental e Central, juntas, já haviam desviado mais de 76,7 BCM de água, beneficiando diretamente 185 milhões de pessoas em 45 grandes cidades.
A Rota Ocidental (WRP) é a mais ambiciosa, complexa e controversa, ainda em fase de planejamento. Ela propõe desviar água dos cursos superiores do Rio Yangtze, no Planalto Qinghai-Tibete, para o Rio Amarelo, enfrentando desafios extremos de alta altitude (3.000 a 5.000 metros), geologia complexa e sismicidade. Sua conclusão está projetada para por volta de 2050.
A tecnologia por trás do maior projeto de desvio de água
O SNWDP é um testemunho da capacidade da engenharia chinesa em superar desafios complexos. Entre os feitos notáveis estão o alteamento da barragem de concreto do Reservatório de Danjiangkou sem interromper sua operação normal, a construção de túneis de grande diâmetro com uso de tecnologia de escudo (shield) para atravessar o Rio Amarelo, e o projeto e construção de aquedutos massivos de concreto protendido, como o Aqueduto de Shahe, considerado um dos maiores do mundo em seus parâmetros, segundo informações técnicas do projeto.
Foram desenvolvidas e aplicadas inovações em materiais de revestimento de canais para controle de infiltração, Máquinas Perfuradoras de Túneis (TBMs) especializadas para condições de rocha dura e alta profundidade (como no projeto Yinjiangbuhan, que complementa a Rota Central, utilizando TBMs da CREG com sistemas inteligentes), e a construção de estações de bombeamento de grande escala na Rota Oriental. Além disso, o maior projeto de desvio de água do mundo conta com sistemas robustos de monitoramento e proteção da qualidade da água, utilizando tecnologias como satélites, drones, sensores inteligentes habilitados para 5G, e algoritmos avançados para o controle operacional dos fluxos de água.
Impactos de um colosso
O SNWDP, pela sua escala, acarreta profundas consequências. Nas regiões receptoras do Norte da China, os benefícios são visíveis: alívio da escassez de água, recuperação dos níveis de aquíferos subterrâneos (combatendo a subsidência do solo), melhoria na qualidade da água potável para milhões de pessoas e apoio ao desenvolvimento agrícola e industrial. Ecossistemas como o Lago Baiyangdian, na província de Hebei, foram revitalizados com o aporte de água.
Contudo, os custos sociais são elevados. O reassentamento de centenas de milhares de pessoas, especialmente para a construção da Rota Central (a expansão do Reservatório de Danjiangkou deslocou cerca de 330.000 pessoas), gerou relatos de compensações inadequadas e dificuldades de reintegração socioeconômica para os afetados. As regiões doadoras no sul também enfrentam restrições de desenvolvimento para proteger a qualidade da água e sofrem com a redução dos fluxos dos rios Yangtze e Han. Ambientalmente, há riscos de poluição ao longo das rotas e potenciais impactos na biodiversidade, como a introdução de espécies invasoras (a exemplo do mexilhão dourado). Os custos financeiros do projeto também são astronômicos, com estimativas que superam os 79 bilhões de dólares.
Opinião dos especialistas: o debate sobre a sustentabilidade e os desafios do SNWDP
O Projeto de Transferência de Água Sul-Norte é objeto de intenso debate entre especialistas. Cientistas e planejadores reconheceram a gravidade da crise hídrica no Norte da China, que impulsionou a busca por uma solução de grande escala como o SNWDP, com alertas de que os aquíferos da região poderiam secar em poucas décadas se nada fosse feito.
No entanto, muitos críticos e ambientalistas apontam para os altos custos socioambientais e os impactos de longo prazo do projeto. Questiona-se se alternativas como dessalinização em larga escala, reciclagem massiva de água e programas mais agressivos de conservação e eficiência hídrica foram suficientemente explorados ou priorizados antes de se optar por uma intervenção tão vasta na hidrologia do país. Um alerta notável, atribuído a um funcionário ministerial chinês, sugeriu que o projeto de desvio de água, embora solucionasse alguns problemas, poderia gerar novos desafios ecológicos. O debate sobre a sustentabilidade financeira, a equidade na distribuição dos custos e benefícios entre as regiões, e a capacidade de adaptação do gigantesco sistema às mudanças climáticas permanece aceso.