Em março de 2021, o mundo parou diante de uma cena inusitada: um navio gigante preso de lado em uma das principais rotas comerciais do planeta. O encalhe do Ever Given no Canal de Suez causou um bloqueio de seis dias, interrompeu bilhões de dólares em mercadorias e se tornou um símbolo do frágil equilíbrio do comércio global.
O Canal de Suez, no Egito, é considerado uma das artérias mais estratégicas do transporte marítimo internacional, com 193,3 km de extensão ligando o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho. Essa conexão direta entre a Europa e a Ásia permite que navios economizem milhares de quilômetros de navegação, evitando o contorno completo do continente africano. Antes de sua inauguração em 1869, rotas como a de Londres a Mumbai percorriam cerca de 19.950 km. Com o canal, essa distância foi reduzida para aproximadamente 11.670 km — o que representa uma economia de até 30 dias de navegação e uma expressiva redução no consumo de combustível. Por dia, entre 50 e 70 embarcações cruzam o canal, que movimenta cerca de 14% do comércio global. Diferente do Canal do Panamá, o de Suez não possui eclusas, pois o Mar Vermelho e o Mediterrâneo estão no mesmo nível. Essa característica o torna particularmente atrativo para o tráfego de navios gigantes, como o emblemático navio Ever Given, que em 2021 ficou encalhado no canal, interrompendo o comércio global por seis dias e evidenciando a importância vital dessa via marítima para a economia mundial.
O gigante navio Ever Given: o colosso de 400 metros que parou o mundo
Em 23 de março de 2021, o Ever Given, um navio de 400 metros de comprimento e 59 metros de largura, encalhou em um trecho estreito do Canal de Suez devido a ventos fortes e falha de navegação.
Operado pela empresa Evergreen Marine, o cargueiro pertence à aliança Ocean Alliance, formada por outras gigantes como CMA CGM, Cosco e OOCL. Com capacidade para 20 mil contêineres de 6 metros cada, ele se tornou o símbolo do caos logístico moderno.
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O encalhe foi tão severo que o navio ficou atravessado de lado, encostado nas duas margens do canal, bloqueando completamente a agem.
As consequências do encalhe: 6 dias de paralisação global
A cena do navio preso viralizou nas redes sociais e expôs uma realidade pouco conhecida fora do setor de logística: o mundo depende de rotas extremamente vulneráveis.
Durante os seis dias de bloqueio, mais de 400 navios ficaram presos ou redirecionados. A fila cresceu dos dois lados do canal, com cargueiros, navios-tanque, petroleiros e até porta-aviões aguardando agem.
As consequências foram imediatas:
- Atrasos em cadeias de suprimento globais
- Escassez de produtos em vários setores, como eletrônicos, automóveis e roupas
- Alta nos preços do petróleo, já que parte significativa do tráfego de combustíveis também utiliza o canal
- Prejuízos estimados em mais de US$ 10 bilhões por dia, segundo a Lloyd’s List
Empresas de transporte chegaram a redirecionar embarcações por uma rota alternativa, contornando o Cabo da Boa Esperança, no sul da África, o que representa um aumento de mais de 9 mil km no trajeto.
Por que o Canal de Suez é um gargalo tão crítico?
Além de ser uma via única e sem alternativas viáveis em curto prazo, o canal é operado por uma estrutura estatal egípcia — a Autoridade do Canal de Suez (SCA) — que, apesar de altamente eficiente, depende de infraestrutura limitada para navios cada vez maiores.
Nos últimos 50 anos, os navios cargueiros cresceram exponencialmente. Enquanto em 1956 a largura média de um cargueiro era de 148 m no convés, em 2010 esse número já superava os 313 metros. O Ever Given, com 400 metros, representa esse crescimento extremo.
Apesar das obras de ampliação feitas entre 2015 e 2020, que incluíram a escavação de um canal paralelo de 35 km, muitos trechos ainda são estreitos demais para manobras complexas.
Como o navio foi desencalhado?
Após seis dias de esforços intensos, o Ever Given foi desencalhado em 29 de março de 2021, com a ajuda de:
- 14 rebocadores de alto porte
- Dragagem intensa na proa e na popa
- Escavação manual e hidráulica da margem do canal
- Uso da maré alta para liberar o casco
A operação contou com engenheiros da SCA, especialistas holandeses da empresa SMIT Salvage e e logístico internacional. Quando finalmente se moveu, o Ever Given foi saudado com buzinas por todos os navios ao redor.
O impacto global no comércio e na logística
A interrupção do Canal de Suez afetou uma cadeia logística que já estava pressionada pela pandemia de COVID-19. O mundo, que havia acabado de entender os gargalos da produção de semicondutores, agora via o transporte marítimo colapsar por causa de um único incidente.
Os efeitos se estenderam por meses:
- Congestionamento em portos europeus e asiáticos
- Atraso na entrega de componentes industriais
- Aumento no custo do frete marítimo
- Desorganização de frotas logísticas internacionais
Alguns especialistas comparam o impacto ao de uma “ponte quebrada em uma rodovia global”. Quando o Canal de Suez parou, o mundo todo sentiu.
Canal de Suez: uma história de geopolítica e poder
A construção do canal foi marcada por disputas e sofrimento. Concebido no Egito Antigo e sonhado por Napoleão, ele só saiu do papel no século XIX graças ao francês Ferdinand de Lesseps, que obteve uma concessão de 99 anos do então vice-rei do Egito.
As obras começaram em 1859 e foram finalizadas em 1869. Estima-se que mais de 120 mil operários morreram durante a construção, muitos em condições análogas à escravidão.
Ao longo do século XX, o canal foi palco de disputas políticas:
- 1956: Nacionalização pelo presidente Gamal Abdel Nasser
- 1967–1975: Fechado durante a Guerra dos Seis Dias
- 1975 em diante: Reaberto e mantido sob controle do Egito, sendo modernizado gradualmente
Hoje, o canal é operado com tecnologia de ponta, incluindo radares, satélites e controle de tráfego computadorizado.
Diferente do Canal do Panamá, o de Suez não possui eclusas, já que os mares Vermelho e Mediterrâneo estão no mesmo nível. Isso reduz o tempo de travessia, que dura de 13 a 15 horas.
Contudo, a ausência de eclusas também torna o canal vulnerável a variações naturais, como marés, ventos fortes e correntes laterais — exatamente o que ajudou a empurrar o Ever Given para fora do curso.
Lições do encalhe: o futuro do comércio marítimo
O encalhe do Ever Given serviu de alerta global. Algumas das lições mais relevantes incluem:
- Redesenho de protocolos de navegação em canais estreitos
- Investimentos em rotas alternativas e infraestrutura portuária
- Adoção de navios menores em trechos críticos
- Integração de sistemas de IA para previsão de riscos meteorológicos e operacionais
Além disso, o evento levou o Egito a anunciar novos investimentos em duplicação e aprofundamento de trechos estratégicos do canal, a fim de evitar futuros bloqueios.
O Ever Given hoje: onde está o navio ‘símbolo do caos?’
Após o incidente, o Ever Given foi retido pelas autoridades egípcias por cerca de três meses. A SCA exigiu compensações que chegaram a US$ 900 milhões, mas, após negociações, um acordo confidencial foi fechado.
Atualmente, o Ever Given segue em operação, mas sua reputação ficou marcada. Tornou-se um ícone da fragilidade do comércio global — e uma lição viva sobre o custo da dependência logística.
O encalhe do Ever Given no Canal de Suez é um caso emblemático. Um único navio, em um trecho de apenas 200 metros de largura, foi capaz de paralisar o comércio global, afetando milhões de pessoas e trilhões de dólares em mercadorias.
O episódio escancarou os limites do transporte marítimo moderno, ainda dependente de canais construídos no século XIX, e reforçou a necessidade de diversificação logística, investimento em inovação e cooperação internacional.
No fim, o Ever Given não foi apenas um navio gigante preso em um canal — foi um alerta de que a globalização pode ser tão forte quanto o seu ponto mais estreito.