Em 1994, os CEOs das maiores empresas de tabaco do mundo negaram a dependência da nicotina perante o Congresso dos EUA. Relembre o caso que mudou a história da saúde pública.
A audiência de 14 de abril de 1994 no Congresso dos Estados Unidos marcou um ponto de virada na luta contra o tabagismo. Naquele dia, pela primeira vez, os principais executivos das sete maiores empresas de tabaco americanas testemunharam juntos e, sob juramento, fizeram uma afirmação que ecoaria por décadas.
Entenda o contexto e as consequências desse evento histórico. Analisaremos as declarações dos CEOs, o que a ciência já sabia na época, e como esse episódio de negação desencadeou uma avalanche de processos judiciais e mudanças regulatórias que transformaram a indústria para sempre.
A audiência que colocou as empresas de tabaco contra a parede
A audiência de 1994 foi o clímax de décadas de crescentes preocupações com a saúde pública. Relatórios do Cirurgião-Geral dos EUA, desde 1964, já ligavam o fumo a doenças graves como câncer e enfisema. A pressão aumentou no início de 1994, quando a FDA (Food and Drug istration) anunciou que considerava regular os produtos de tabaco como drogas.
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O comissário da FDA, David Kessler, apresentou evidências de que as empresas de tabaco manipulavam deliberadamente os níveis de nicotina para manter a dependência. Reportagens na TV reforçaram a acusação, levando o congressista Henry A. Waxman a convocar os CEOs para testemunharem sob juramento. A pressão era tão grande que a presença deles foi considerada não opcional.
A negação unificada de que a nicotina causa dependência
No dia da audiência, os sete CEOs compareceram. Um a um, sob juramento, eles negaram que a nicotina fosse viciante. William Campbell, da Philip Morris, afirmou: “Acredito que a nicotina não causa dependência”. James W. Johnston, da R.J. Reynolds, argumentou que “os cigarros e a nicotina claramente não cumprem a definição clássica de dependência. Não há intoxicação”.
Todos os outros executivos seguiram a mesma linha. A frente unificada apresentada por eles buscava projetar força e convicção. Além de negar a dependência, eles também negaram manipular os níveis de nicotina ou visar crianças em suas campanhas publicitárias, apesar da existência de personagens como Joe Camel.
A ciência versus a indústria: o que já se sabia sobre a dependência da nicotina
A posição das empresas de tabaco em 1994 contrastava fortemente com o consenso científico da época. O Relatório do Cirurgião-Geral de 1988 já havia sido inequívoco ao classificar a nicotina como uma droga que causa dependência, com processos farmacológicos e comportamentais similares aos da heroína e cocaína.
A indústria do tabaco, no entanto, apegava-se a uma definição antiga e restrita de “dependência”, que exigia “intoxicação”. Documentos internos revelados posteriormente mostraram que as próprias empresas sabiam da natureza aditiva da nicotina há décadas. A estratégia da indústria era criar “dúvida” e “controvérsia” para combater os fatos científicos e proteger seus interesses.
O engano deliberado e suas consequências
Especialistas e analistas da indústria e da saúde pública consideram o testemunho de 1994 um ato de engano deliberado. Os CEOs, sob juramento, perpetuaram uma estratégia de negação que suas próprias empresas sabiam ser falsa. Este episódio foi um catalisador para a chamada “terceira vaga” de litígios contra as empresas de tabaco.
Poucas semanas após a audiência, estados como Mississippi e Minnesota iniciaram ações judiciais para recuperar os custos de saúde decorrentes de doenças relacionadas ao fumo. O julgamento de Minnesota foi crucial, pois forçou a divulgação de milhões de páginas de documentos internos da indústria. Esses documentos se tornaram a “arma fumegante”, provando o engano. O clímax foi o Master Settlement Agreement (MSA) de 1998, um acordo histórico de mais de US$ 200 bilhões entre 46 estados e as quatro maiores empresas de tabaco, que também impôs severas restrições ao marketing.
Como o testemunho de 1994 mudou a percepção pública e as políticas de saúde
O testemunho dos CEOs em 1994 e as revelações que se seguiram deixaram um legado profundo. A credibilidade da indústria do tabaco foi severamente abalada, e o episódio se tornou um símbolo de má conduta corporativa. Isso impulsionou uma exigência social por maior transparência e responsabilidade por parte das empresas.
O evento também deu um impulso significativo às políticas de saúde pública. As restrições de marketing impostas pelo MSA e o financiamento de campanhas educativas contribuíram para uma redução significativa do tabagismo entre os jovens. A experiência dos EUA, incluindo a divulgação dos documentos da indústria, influenciou a criação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) da Organização Mundial da Saúde (OMS), o primeiro tratado global de saúde pública juridicamente vinculativo, adotado em 2003. A luta contra o tabagismo é contínua, mas o episódio de 1994 foi um o decisivo para a responsabilização da indústria.